domingo, agosto 15, 2010

Consequência (3ª parte)


Antes de sequer pensar em voltar ao local todo destroçado que era a sala, tentou encher seus pulmões de ar, parando para pensar um pouco. Teria que ter outra solução, já que sua ideia fora devastada. Como as consequências e os fatos podiam ser tão cruéis? Com seus sentidos voltando ao normal, percebeu que não havia móvel novo para ser sentido o cheiro. E que também, agora o cheiro, que estava mais forte, não se parecia nem um pouco com cheiro de móvel novo. Estava consciente de novo. Sim, pois havia sido desligado momentaneamente pelo fluxo de raiva misturada com adrenalina. Sim, o cheiro decididamente estava mais forte na cozinha. Mas não procurou a fonte.
No corredor para a sala, passou por uma porta intacta, onde ficava o banheiro do andar térreo. Seja quem fosse que invadiu a casa, sabia que não era no banheiro que deveria procurar. Era um ladrão esperto. Se é que era um ladrão. Se fosse um ladrão, seus problemas seriam enormemente minimizados. Mas tinha que checar o andar de cima. De qualquer jeito, sabia que haviam consultado lá. Chegou à sala, pulou as ruínas e chegou à escadaria. Subiu-a com surpreendente firmeza, e chegou ao patamar superior. Também não ouvia coisa alguma. Agora que voltara ao normal, o silêncio lhe perturbava. Lembrara que o plano não daria certo, e que poderia estar tudo perdido. Queria ouvir risos, ou mesmo um choro.
Pela primeira vez desde que tivera a ideia, lembrara das filhas, tão bonitas, tão saudáveis. Tão crescidas, com seus 12 anos, brincalhonas, sorriso contagiante, cabelos tipo channel tão loirinhos, tão iguais. Às vezes até ele, o pai, se confundia entre elas. Mas a mãe não, esta saberia diferenciá-las mesmo se estivessem a uma plena distância, à noite. Passou pelos quartos das duas, uma porta colada na outra, com plaquinhas com os nomes delas escritos penduradas. Queria entrar para sentir o bom perfume dos quartos, sentir-se como todas as noites sentia, na presença tão confortável das meninas sorridentes, que lhe pediam para contar histórias de terror e, às vezes, acabavam adormecendo os três, juntinhos, abraçados, carinhosamente unidos como um só. A mulher só tinha o trabalho de cobri-los com uma manta enorme, mas fazia isso com uma ternura imensurável. Mas no momento, não poderia parar o seu caminho. Teria que fazer, se mais cedo ou mais tarde, é melhor mais cedo. Se tudo desse certo, teria uma vida toda para sentir as filhas abraçando-lhe e pedindo as histórias mais horripilantes. Mas isso tudo já poderia estar perdido. Tentava não pensar nisso. Prosseguir como se o plano ainda fosse dar certo.
Percebeu que a porta do seu quarto estava entreaberta. Seria ali e naquele momento. Aproximou-se cauteloso. Sabia que qualquer movimento era decisivo. Sua sorte era que a porta tinha a maçaneta na esquerda, pois sua mulher era canhota. Assim, ele pôde se aproximar sem que um possível ocupante do quarto notasse sua sombra. Chegou mais perto e ouviu sussurros abafados. Puxou a porta milimetricamente, e os sussurros cessaram. Como não ouvia mais nada, decidiu abrir a porta de vez. Encontrara os dois, sentados lado a lado, próximos demais. As duas meninas, a um canto, observando a cena. Os dois pareciam amedrontados com a presença dele, mas não se mexiam. Sentiu algo crescendo dentro dele, um sentimento corrosivo e intenso. Sabia que, de qualquer forma, isto não era tudo o que esperava, mas já era suficiente para que seus neurônios voltassem a sentir-se preguiçosos. Demorara para entender tudo o que estava acontecendo. Quando deu-se conta, percebeu olhares maliciosos e malvados de suas filhas. E sem palavra, percebeu finalmente qual era o tal cheiro que invadia a casa inteira. Sua mulher pareceu notar o que ele estava pensando, mas não saiu do lado do homem, que ainda estava petrificado. O homem nervoso que estava parado à porta enfiou as mãos trêmulas dentro da jaqueta ainda muito molhada, pegou a pequena forma quadrada cheia de líquido dentro do bolso interno e puxou-a para fora. Abriu a tampa. Com um clique, saiu uma faísca, e desta, avassalou-lhe uma labareda que lhe doía, mas era melhor do que conviver com a dor daquela cena...
-Amor, acorde! Vamos, você está suando!
E realmente estava. Estava quente demais por causa do exagero de cobertores. Abriu os olhos desconfiado. Sua mulher estava com aquele olhar preocupado e terno que conhecia bem. Pegou seus óculos na mesa-de-cabeceira e, olhando mais claramente para o rosto de sua amada, abraçou-a firmemente e disse ao seu ouvido:
-Vá acordar as meninas. Está tudo bem.

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