Vinte
e cinco de junho de dois mil e três. Dezenove horas e quarenta e sete minutos.
Lá fora fazem oito graus Celsius. Faltam exatamente treze minutos para abrirmos
as portas e recebermos por esta noite cerca de trezentos clientes ansiosos por
um lugar quente e confortável, aonde estes porcos gordos podem ter toda a
lavagem que seus milionários bolsos podem pagar. Meu nome é Andrei e sou apenas
uma peça desse sistema todo. A peça que recolhe a carne pútrida da caixa de
gelo que chamam de frigorífico para então jogar em cima de uma tábua e
desfiá-la em fatias igualmente nojentas de um centímetro de espessura e dez
centímetros de diâmetro cada, manda-la ainda sangrando para a pessoa mais
arrogante e narcisista que já vi na face da Terra, que se auto-intitula chef e servi-la com desprezo ao olhar
faminto e selvagem daqueles seres, para quem parecemos nada mais do que servos,
escravos. Vinte horas. Chegou a hora.
Hoje
é um dia especial. Hoje faz exatamente três mil seiscentos e cinquenta e dois
dias que esta espelunca que prepara comida cara foi aberta pela primeira vez.
Obviamente, o prefeito Saint não poderia perder esta oportunidade de se
entrosar com seus eleitores mais abastados. Lá está ele, com sua barba ruiva,
parecendo estar suja de sangue, seu paletó verde-escuro tradicional do país de
seus antepassados, de quem diz ter muito “orgulho”. Está rindo com, me parece,
seus parentes. Esta visão me dá náuseas, mas a raiva me faz ficar encarando de
dentro da cozinha.
— Andrei, a casa está
cheia, seu idiota, pare de ficar aí olhando! — Chama minha atenção um dos colegas de trabalho.
Viro-me lentamente,
sincronizando com meu humor que tem que ser controlado para conseguir
parcamente sustentar minha mãe e meus três irmãos pequenos. A pancada do
amaciador de carne me traz à realidade. Respiro duas, três vezes profundamente,
pego meu casaco que deveria ser branco, agora já está em um tom avermelhado, e
entro no frigorífico. As únicas coisas que eu esperava encontrar lá dentro eram
gelo, varas de metal e muita carne congelada pendurada nelas. Mas encontro
também uma pessoa, de costas, bem no fundo da sala, sem proteção
alguma ao frio cortante, dando a impressão de que está analisando peça por peça
de carne. Chego mais perto para enxergar melhor através da neblina fria e vejo
Robert, o chef.
— Olá, Andrei. Como está a noite lá fora? — Diz sem
se virar.
— Bem, a casa está cheia. — Digo em um tom
extremamente monótono.
— Ótimo, ótimo... — ele está pensativo demais —
Então, acho que temos muito trabalho a fazer, não é? — e também muito estranho.
— Sim, foi o que vim fazer aqui.
— Ótimo saber que posso contar com você, Andrei.
Ele se vira, dá um sorriso largo demais, sincero
demais para ser verdadeiro, e se encaminha à porta. Chegando à distância de
aproximadamente dois metros da saída, ele diz:
— Ah, pegue a melhor peça para o prefeito, sim? — sem
esperar resposta, vai embora.
Chego mais perto das peças que ele estava analisando
e vejo uma que parece fresca, vermelha, limpa, a melhor peça de carne que eu já
vi na vida. Dá vontade de arrancar um pedaço dela com os dentes, crua deste
jeito mesmo. Pequena em comparação às outras, mas totalmente suculenta. Tiro-a
da vara e a levo para a cozinha. O fedor de alho frito e ervas cozidas já toma
o ambiente. O costume não é suficiente para disfarçar o mal-estar que este
cheiro provoca. Minha faca não está aonde a deixei. A raiva aumenta. Facas são
instrumentos extremamente pessoais e não devem ser tocadas por outras pessoas
senão os donos. Fecho os olhos e torço para que ela apareça na minha frente
quando eu os abrir. Quando abro os olhos, deparo-me com Robert segurando uma
bela faca, quatorze centímetros de um cabo azul escuro adornado de enfeites em
dourado e prata, vinte e sete centímetros de uma lâmina afiadíssima que herdei
de meu pai. A lâmina estava com manchas vermelhas.
— Esqueci-me de lhe devolver. Não consigo achar minha
faca em lugar algum e, como esta é a melhor que temos aqui, tirando a minha,
resolvi empresta-la por uns minutos. Você não se importa, não é? — ele está de
volta ao normal.
— Não, tudo bem. — Estendo minha mão para receber o
instrumento. Robert coloca-o na minha mão, mas com a lâmina voltada para a
minha palma. Respiro fundo, já imaginando que isso ia acontecer. Preciso
prender a faca entre meus dedos para ficar longe da lâmina e tira-la da mão
deste propenso psicopata. Sinto uma dor aguda enquanto a lâmina começa a correr
pelas linhas da minha mão quando, num reflexo, giro a mão para cima, segurando
firmemente no contragume. Robert olha penetrante em meus olhos.
— Lave a faca e comece a trabalhar. — diz,
ameaçadoramente.
Digo absolutamente nada. Faço o que ele manda, lavo a
faca, mas o sangue nela está tão fresco que é fácil de tirar. Começo a cortar a
carne, mas percebo que a tonalidade de vermelho dela é diferente também das
outras carnes. E é igual à tonalidade de vermelho presente anteriormente na
faca. Estranho por um segundo, mas penso que deve ser uma qualidade de boi mais
apropriada para receber uma autoridade como o Sr. Saint. Escuto uma conversa
abafada de cozinheiros do outro lado da mesa de inox.
— A Bernadette ficará com problemas. Ontem discutiu
com o Bob, hoje nem deu as caras. Deve ser por isso que ele está tão raivoso.
— Mas ela mereceu. Ela ficou louca de inventar que a
comida aqui é estragada. Ainda bem que deram um jeito de contornar a situação.
Passe-me o maçarico, por favor?
Bernadette, a mamma
do restaurante, a melhor cozinheira que este país já viu, uma simpatia de
pessoa e minha única amiga de verdade aqui. Ela me trata realmente como um
filho. Ela estava certa sobre a comida estragada, eu presencio isso todos os
dias, cortando aquelas carnes já verdes. Aliás, todos sabem disso aqui. Alguns,
como esses dois, são influenciados por Robert, ou Bob, como estes bajuladores
gostam de chamar, ou então não tem coragem suficiente para enfrentar o chef. Ela está aqui desde que o
restaurante abriu, costumava ser a chef
e todos a respeitavam. Desde que o pai de Robert comprou o restaurante, há dois
anos, Bernadette foi destituída do cargo e só conseguiu um lugar de cozinheira
por sua experiência. Fico me perguntando se ela não veio hoje por medo do que
Robert podia fazer para ela. Talvez ele já tenha até falado com o pai e ela
tenha sido demitida.
Eu mesmo não deveria estar aqui. Quando meu pai
morreu eu tive que assumir o lugar dele de cozinheiro, mas comecei por baixo,
obviamente. Sempre sonhei em mexer com
números. Eles dançam na minha frente como um balé magistral e se arranjam de
forma esplendorosa de forma que, naturalmente, consigo manipula-los na minha
cabeça e fazer contas que muitos somente conseguiriam com o auxílio de uma
máquina calculadora. E só estudei até os quinze anos.
Mas aquelas informações não estavam muito
sincronizadas em sua dança. Primeiro, o deslumbre quase vitorioso e totalmente
esquizofrênico de Robert no frigorífico. Depois, o sumiço da minha faca seguido
pelo ataque de Robert à minha mão. A carne diferente. O sangue. Bernadette.
A partir deste momento, não sei mais o que é real ou
não. Sinto algo, sei disto, mas é mais interno do que externo. Isto que sinto,
não sei definir bem, é uma mistura heterogênea entre adrenalina, nervosismo, sangue,
histeria, compreensão e raiva. Caldeirões inteiros de raiva derramados sobre
minha alma. Sinto minha pressão baixar, meu rosto ficar insensível, mas uma
ruga entre minhas sobrancelhas está se formando, sei disto. Sei também que o
sangue parece ter coagulado em minhas mãos e elas ardem. Vejo meu punho fechado
com força em torno de um cabo de madeira tingido de azul, extremamente bonito,
a faca do meu pai, a faca que é o único bem que possuo. Minhas articulações dos
dedos estão brancas. Respiro involuntariamente três, quatro, cinco vezes,
rápido, mas não penso. Não penso em nada do que faço a partir do momento em que
entendi. Em que as peças do quebra-cabeça se encaixaram e deram seu último pas de bourrée em direção ao grand finale. ASSASSINO. ASSASSINO. ASSASSINO.
Vejo-o entrar novamente no frigorífico e o sigo. Ele
não percebe minha presença porque o circulador de ar dentro da sala foi ativado
e o barulho é ensurdecedor. Mas quero que ele me olhe nos olhos. Quero ver
isto, sentar na tribuna e ficar apreciando o espetáculo do lugar mais
privilegiado que existe. Frente a frente, olhos nos olhos. Ele avança em
direção à parede da sala e abre uma espécie de porta secreta que eu nunca
soubera da existência. Chego mais perto e vejo lá dentro corpos, muitos corpos
nus, por volta de quinze corpos empilhados. O fedor é insuportável. Deve ser
por isso que ele veio pra cá justamente quando a sala estava com o ar
circulando, para disfarçar o cheiro. No topo da pilha, vejo uma massa grande,
com cabelos curtos ondulados e aparência idosa. Bernadette. Parece que Robert
achou sua faca, pois está desembainhando-a, puxando uma perna do corpo de Bernadette
e cortando um pedaço considerável. Sua faca é da mais alta qualidade e em
questão de segundos ele tira um naco de carne e guarda em um saco transparente.
Vejo que o outro lado do corpo de Bernadette já está boa parte decepado. A
carne que eu estava cortando. Sinto um enjoo profundo ao perceber isto, mas
preciso me manter firme. Robert se levanta e vira. Parece que a esquizofrenia
voltou, pois não parece nem um pouco surpreso por me ver ali.
— Ah, Andrei. Parece que nossa despensa está com
produto novo, não é? Mas... Eu acho que ele não vai durar muito tempo... Sabe
como é, carne velha não é muito boa. Acho que eu preciso de carne nova, para...
Atrair mais fregueses. Concorda?
— Seu louco! O que você fez?
— Vamos lá, Andrei. Há quanto tempo este restaurante
não tem tantos clientes?
— Você é doente.
— Ah, bem. Então neste caso, creio que já achei minha
carne nova.
Ele saca sua adaga de dois gumes com lâmina de trinta
centímetros e parte para cima de mim. Consigo desviar o primeiro golpe, mas o segundo
corta meu braço esquerdo. Não tenho muita condição física, mas sei manejar uma
faca muito bem. Revido. Um, dois, três golpes evadidos. Parece que Robert é
mais ágil do que eu imaginava. Ele se recosta na parede e eu avanço. Um grande
erro meu, pois no momento em que ia cravar a faca em seu coração, ele gira, bato
com a cabeça na parede e saio com um corte mais profundo no ombro direito. Ele
se move com facilidade e eu sou muito desastrado. Não tenho nem tempo para
recuperar o fôlego, já vejo Robert empunhar a adaga não para cortar, mas desta
vez para perfurar. Ele corre e, pelo que acredito ser um milagre, dou um salto
para o lado e consigo fazer um corte em sua calça. Ele parece ficar com raiva e
avança com a vitalidade de um atleta. Uso o gelo em meu favor e corro para um
lado da sala enquanto ouço-o escorregar, mas não cair. Estou a uma distância
teoricamente segura, mas ele ainda avança. Seus movimentos parecem ensaiados,
longos e esguios. Parece... Um dançarino. É isso. Percebo que o braço direito
não tem mais forças, então troco a faca de mão. Apoio o contragume da faca na
palma da minha mão e fecho meu punho, deixando a lâmina entre meu polegar e
indicador. O contra disto é que não sou canhoto, e tenho uma inabilidade
latente no braço esquerdo. Vejo meu adversário se aproximar a passos lentos e o
espetáculo começa. Números, linhas, parábolas e circunferências se formam à
minha frente e no meu braço e punho. Encontro uma maneira confortável de
segurar a faca e vejo o ponto. Lanço a faca. Parece que tudo se movimenta mais
lento, vejo a trajetória da lâmina prosseguir no compasso certo, em direção ao
coração. Robert percebe a lâmina encaminhando-se em direção a ele e se assusta.
No susto, ele escorrega e cai. Mas não há mais salvação. Neste momento a cena
volta à velocidade normal e vejo que minha faca está rápida demais para errar o
alvo. Acaba entrando bem na traqueia, o que faz com que Robert fique tremendo
no chão, sufocando, sofrendo. Segundos depois, vejo o tremor cessar e o sangue
se espalhar pelo gelo. Está acabado.
De dentro da cozinha fico assistindo o prefeito, que
deve ter acabado de contar uma piada para a mesa estar rindo tanto, receber uma
bandeja de cúpula com o prato principal. Ele fica animado e pede para a enorme
filha de doze anos abrir a cúpula. É surpreendente como a expressão da mesa
mudou tão de repente de excitação para terror absoluto. Porque em cima da
bandeja estava a cabeça do chef.