domingo, agosto 15, 2010

Como chuva (1ª parte)


Nada era digno. Não naquele momento, um dos poucos e últimos, de puro prazer da alma. As atenções estavam voltadas apenas para seus encharcados sapatos e, de vez em quando, para o cabo de madeira toscamente talhado seguro em sua forte, mas vacilante mão. A vontade era de gritar para todos o ouvirem, mas reservava suas forças para continuar encarando do sapato para o cabo, do cabo para o sapato.
Não ouvia seus passos, pois saíam abafados. Os espoucos que ouvia acima dele eram, no silêncio, ensurdecedores. Seu protetor não adiantava muito, pois suas roupas, até a barriga, estavam molhadas, colando sua calça ao corpo e fazendo um frio lancinante penetrar seus músculos. Sua raiva era latente, mas tentava não explodir. Mantinha-se passivo e monótono, apenas andando e, de cabeça baixa, refletindo sobre o couro e a madeira. Realmente não queria pensar em mais nada, apenas absorto e, como não podia deixar de estar, incomodado pelas gotas.
Ofegava ainda antes da metade do caminho. Não por estar cansado, pois não estava. Era acostumado com longas caminhadas, afinal, não possuía carro e não havia ônibus passando sequer perto do local onde trabalhava. Ia e voltava a pé todos os dias. Ofegava pois seu coração disparava. Ofegava por tudo aquilo que ocorrera e que ainda iria ocorrer, ofegava por medo. Como nunca o sentira antes. Não sabia o que esperar, mas sabia que esperava algo que lhe causaria dor. A dor física era a que menos importava.
Aquilo lhe incomodava com maior intensidade do que as gotas, tornando-as meras interferências ao pensamento que repentinamente lhe surgia. E crescia, como chuva. Agora já chegara à metade do caminho, quando passava por um posto de combustível deserto. Várias ideias insanas passaram por sua mente ao ver as bombas de gasolina e álcool, sentia a caixa com apenas um cigarro dentro do bolso da jaqueta e o isqueiro logo do lado. Por alguns segundos, se não existisse o pensamento, essas ideias insanas poderiam certamente dominar sua mente e ele pegaria o isqueiro. Mas não. Queria aproveitar o pensamento que, por pelo menos alguns instantes o salvou. Como poderia ser tão óbvio? A resposta, que poderia ter lhe destruído, poderia finalmente conceder-lhe a paz que merecia.
O sapato e o guarda-chuva já não lhe importavam mais. Agora tinha que completar a outra metade do caminho. Mais 20 minutos. Era tudo o que precisava para botar o plano em ordem. Andava mais rápido, talvez tinha menos tempo. Mas não precisava de muito mais tempo, já tinha tudo automaticamente em sua cabeça, como se seus neurônios, que já trabalhavam há muitos meses contra seu dono, tivessem decidido a ajudar-lhe. O frio fora coberto por uma rápida, mas intensa onda de choque que fez com que a adrenalina substituísse seu sangue nas veias. Agora nem mesmo um tiro lhe causaria dor, pois tudo em volta havia sumido, e só havia ele e seu pensamento, seu plano infalível.
Faltava-lhe pouco agora. Nada mais que cinco minutos, e a tensão caía sobre ele como um pé d'água em um dia antes ensolarado. Era irresistível a tentação de se encolher pelo tremor de ansiedade que perspassava cada milímetro de seu esqueleto. Nem vontade de fumar tinha mais, afinal, para quê gastar o último cigarro com a derrota, se poderia aproveitá-lo para comemorar a vitória? Seu corpo reagia ao iminente êxito. Tentava colocar tudo de ruim pra fora. Suava frio, tinha episódios constantes de tentativa de bocejo e seus músculos contraíam. E como não poderia deixar de ser, os músculos faciais trabalhavam à toda potência, conferindo-lhe um involuntário, mas completamente consciente sorriso de canto de boca, um sorriso malicioso de criança que está prestes a aprontar.
Chegou à rua destinada. Ainda parara um pouco de andar, bem no alto da rua, observando as casas tão conhecidas, tantos momentos. Mas agora não era nenhum desses. Era um novo momento, um novo capítulo de sua vida. Sua vida. Com essas palavras em sua mente, a coragem lhe invadiu e moveu seus pés para prosseguir com o plano. Desceu até a altura do número 450, onde havia três casas muito parecidas, mas uma tinha o muro de tijolos, outra o muro era amarelo e outra, salmão. Dirigiu-se ao muro de tijolos. Abriu a portinhola quase sem pensar, de tão automático que este gesto se tornou com o passar dos anos. Chegou ao hall de entrada, que mais parecia uma sacada, com flores ornamentando o corredor e um teto de vidro logo acima de uma porta de madeira. Fechou o guarda-chuva, deixou-o ao lado da porta, em cima de um elegante carpete, no qual sua mulher já lhe havia dito para não colocar objetos molhados. Mas a força do hábito era maior. Ao encarar a maçaneta redonda, engoliu em seco. Sabia que toda aquela raiva, toda aquela dúvida estava para desaparecer, mas mesmo assim, não conseguia controlar o fluxo de hormônios que lhe diziam para sentir medo. Encostou no gelado metal e, com um súbito fechar de olhos, abriu a porta.

Um comentário:

  1. Eu adorei *-*
    Você escreve com tantos detalhes, traz uma emoção verdadeira para o personagem. É algo simples, mas ao mesmo tempo tão familiar, uma sentimento que a gente já passou ou passará ainda na vida.

    Tem continuação esse texto? Gostei muito dele *--*

    Parabéns pelo blog ;* estou te seguindo *---*

    Obg por ter visitado o meu blog ;DD

    Beijoos

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