quinta-feira, abril 01, 2010

Sobrevivente

Gente... Desculpa, mas eu fiquei inspirado agora. Esse é o meu mais longo conto. Mas também é o que me fez pensar mais e quase chorei ao produzi-lo.
Espero que gostem tanto quanto eu!


Sobrevivente. Esta é talvez a melhor descrição para Daniela. Talvez não. Pensando bem... Comecemos do início. Uma loira dos cabelos enrolados, nada de surpreendente, como vossa senhoria deve estar pensando. Não. Era sem graça... Mesmo seus olhos verdes não lhe davam o ar da beleza. Magricela, parecia que suas pernas e braços se reduziam a finas tiras de matéria. Lábios esbranquiçados e finos. Respirava tão delicada e curtamente que seu peito nem se movia. Não corria, andava. Andava como se nada mais existisse. Andava como se apenas o céu fosse o seu objetivo. Andava admirando as nuvens, as estrelas e tudo o que as pessoas normalmente não observam. Seus olhos verdes ficavam transparentes. Parecia que não pertencia a este mundo. Tudo bem, me expressei mal. Ela definitivamente não pertencia a este mundo. Era sonhadora. Utopista. Idealizadora. Talvez me expressei mal novamente. O mundo não pertencia a ela. Ela era absoluta em seu próprio mundo.
Morava em um bairro nobre perto do centro comercial da cidade. Sua escola era imponente e reconhecida. Escola de renome. Exatamente por isso, de mensalidade um pouco acima do padrão. Não era problema algum. Sua mãe solteira era muito bem providenciada de recursos. Era inteligentíssima, realmente fora dos padrões já altos de sua escola. Até dos padrões de meninas de 14 anos como ela. Mas seu QI elevado não escondia sua alienação. Além dela, sua mãe compartilhava atenção com outras duas filhas. Todas igualmente loiras de olhos verdes, mas especialmente mais bonitas que Daniela. Minto. A atenção não era compartilhada, era bipolarizada pelas irmãs. Sua mãe não dava a mínima importância à sua vida. Matriculara-a na escola apenas para sustentar status. Sabia que as outras filhas, 15 e 17 anos, eram mais bonitas, mais populares e, para a satisfação de Daniela, chamavam mais atenção na escola, deixando-a invisível, assim como queria que fosse.
Nunca se interessara em nenhum garoto. Nem houve situação em que se comprovara que algum garoto se interessava por ela. Apenas uma vez, em uma brincadeira feita pelos populares, falaram que o garoto mais bonito da classe estava afim dela. Claro que isso serviu de chacota da turma sobre ela. Mesmo querendo manter-se solitária, procurava manter-se higienizada e, no máximo possível, bonita. Já roubara os perfumes de suas irmãs, junto com um conjuntinho de maquiagem. Embora não soubesse maquiar-se, mesmo porque a mãe não se interessava em ensiná-la, ela se esforçava e conseguia até um efeito satisfatório. Adorava a cor azul. Para ela, era o céu condensado em apenas uma ideia. E ela adorava o céu.
Um dia chuvoso, logo após sair da escola, teve que ir para casa a pé, pois, como frequentemente acontecia, sua mãe lhe havia esquecido. O Sol estava escondido sobre as nuvens. O céu estava escuro. Nada a poderia alegrar. O azul era morto aquela tarde. Seus olhos, cinzentos agora, não tinham menor intenção de avivar. Na chuva, Daniela parecia apenas um fantasma inofensivo vagando pela calçada. Os cabelos não estavam mais enrolados, estavam escorridos pelos seus ombros, na forma de algo que parecia macarrão instantâneo. Seus livros e cadernos, carregados nos braços, pela falta de mochila estavam encharcados, praticamente inutilizáveis. Mesmo assim, estava decidida a chegar em casa. O único lugar no qual ela poderia se secar, embora não fosse bem tratada.
Agora o mais intrigante é o porquê de Daniela ser rejeitada pela família. Realmente, ela não entendia, mas aceitava. Não ousava voltar uma palavra sequer contra a mãe e as irmãs. Sabia que se fizesse isso, não teria onde ficar. E Daniela tinha razão. Sua família já não a suportava. Já não bastasse a idiotice de ficar olhando para o céu à noite, no quintal, como também suas manias e estranhezas. Daniela era uma aberração dentro de sua casa. Os episódios de “insanidade” estavam ficando cada vez mais intensos e a mania de organização era insuportável. Bastava alguém mudar um objeto de lugar que ela colocava-o de volta ao exato lugar de origem. E também a fascinação pelo móbile da irmã do meio, que consistia no Sistema Solar, no qual os planetas ficavam girando em volta do Sol, enquanto luzes piscavam dentro de cada planeta. Pra Daniela, apenas observar aquilo dava uma sensação de tranqüilidade, pela qual podia fugir do mundo que lhe maltratava. Logo depois que a irmã ganhou o móbile (Daniela tinha 5 anos), ela começou a querer imitar o movimento da decoração com vários outros objetos, que lhe causava igual fascínio. Para ela era uma experiência prazerosa e interessante, ver os objetos girarem. Para sua mãe, era sinal de completa psicose, o que fez com que ela rejeitasse a filha e fizesse as outras duas filhas criarem uma aversão à irmã.
Caminhando sob a chuva, Daniela já estava completamente encharcada. Parecia que a água estava entrando pela sua pele e invadindo seus finos ossos. Faltava ainda 3 quadras para chegar em casa. Daniela estava cansada. Daniela estava triste. Ensaiava uns suspiros de choro, mas aguentou. Andou mais alguns metros, com sua sapatilha de solado baixo, que, a esta hora estava dando sérios machucados a seu pé, quando ouviu um barulho estridente, que fez mesmo os seus encharcados pelos se arrepiarem. Foi um barulho tão perturbador que ela desabou no choro. Quis fugir desse mundo, quis alcançar o azul do céu. Suas pupilas se dilataram extremamente, chegando quase ao tamanho da cinzenta íris. O medo percorria seu sangue. Precisava se proteger. Se proteger desse mundo que queria o seu mal. Se encolheu no meio do dilúvio. A partir daí não percebeu mais nada do que lhe perturbava. O som aquietou-se, a chuva cessou, seu corpo ficou seco, quente e confortável. Apenas percebeu uma luz de imensa intensidade se aproximando. Levantou-se. Foi em direção da luz, tão bonita que era.
Um baque. Encontrou-se caída no chão, encostada na parede de uma casa próxima, agora a chuva voltou, e também mais um líquido quente que lhe parecia sair das narinas e da cabeça. Voltaram as dores, não só no pé, essa era a que menos importava. Sua cabeça parecia estar sendo martelada. Seu estômago retorceu-se em cólicas e o pulmão não puxava mais ar. Tentava fazer esforço para preencher os pulmões, enquanto várias sombras cobriam o seu céu. Vozes difusas ecoavam ao seu redor. Os olhos abertos, mas embaçados. Conseguia apenas ver um vulto enorme à sua frente, com duas lanternas. Parecia uma caminhonete. Não conseguia mover-se por causa das dores. Repentinamente, sentiu a chuva se esvair. Brilhou um raio de Sol entre as nuvens e o seu azul, tão querido azul, voltou a se mostrar para a sua dona. Sim, era dela aquele azul tão claro, tão brilhante e calmo. Mesmo com todas as dores, o líquido quente já cobrindo seu rosto inteiro e o corpo ficando cada vez mais fraco por causa da falta de ar, surgiu um sorriso, pela primeira vez em sua vida, um sorriso sincero, de quem sabia que afinal conseguiria tudo o que sempre quis. O céu. O azul. Era definitivo. O azul seria todo dela e ela finalmente teria a paz. Seus olhos, antes cinzentos e geralmente verdes, transformaram-se em um azul intenso. Tão intenso que chegou a impressionar os presentes. Não pertencia a esse mundo nem o mundo pertencia a ela. Ela pertencia ao céu.

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